Ainda estou aqui: memória e trauma de uma família e de um país

“Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem de ser”.

Ainda estou aqui é o filme do momento nas conversas, nas redes sociais e nas salas de cinema de todo o Brasil. Atraindo mais de 350 mil espectadores aos cinemas apenas em seu primeiro fim de semana em exibição, o longa conquistou o interesse do público brasileiro devido à boa recepção que vem recebendo, à campanha pela indicação de Fernanda Torres ao Oscar e, naturalmente, pela história real emocionante de uma família vítima da ditadura militar brasileira.

Fernanda Torres vive Eunice, uma mulher da classe média carioca que vê sua família começar a ruir quando o marido, o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), é levado por agentes do Exército para prestar um depoimento e jamais retorna. Na verdade, Paiva foi preso sob a acusação de conspirar contra a ditadura militar vigente e de ajudar grupos de esquerda que lutavam contra o regime. A partir de então, Eunice precisa lutar para descobrir o que aconteceu com o marido ao mesmo tempo em que deve cuidar sozinha de seus cinco filhos.

O filme é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, um dos filhos de Paiva e Eunice, que explora a luta real da mãe para encontrar não somente respostas, mas também um fio de normalidade e felicidade em meio aos anos de chumbo de um regime opressor e violento.

O início do longa é dedicado a inserir o espectador no cotidiano das personagens. O estado policialesco e hipervigilante da ditadura é contrastado com o espaço feliz da casa da família, e é impossível não se importar com os Paiva depois de testemunhar seus pequenos momentos de alegria cotidiana, como um jantar com amigos, a adoção de um cachorro e uma dança entre irmãs.

A direção de Walter Salles (de Central do Brasil ) e o excelente elenco fazem, dessa maneira, um trabalho muito efetivo em colocar-nos na rotina e no espaço da família – resultando na criação de um vínculo emocional que só vai ser completamente compreendido pelo espectador já no final da exibição, durante os créditos.

É por isso que a invasão da casa pelos agentes da ditadura soa tão íntima do espectador. Nessa sequência em específico, a fotografia de Adrian Teijido traduz, ao mesmo tempo, a situação da família e a reação emocional de quem assiste: o filme antes vivo das cores e dos sons cariocas da década de 1970 obscurece, e o espaço da casa dos Paiva, antes seguro e acolhedor, torna-se lúgubre, silencioso e ameaçador.

Mas o que torna Ainda estou aqui um filme verdadeiramente grandioso é a atuação irretocável e sensível de Fernanda Torres. Ao longo de praticamente todo o longa – em apenas um momento Eunice cede às emoções que a perturbam e extravasa sua justa raiva e revolta – a protagonista mantém uma postura contida e obstinada, ainda que em seu íntimo resida uma mulher profundamente ferida. Fernanda comunica com sutileza as dores de Eunice não com lamentos e lágrimas, mas por meio de expressões, olhares e silêncios. A aparição de sua mãe, a atriz Fernanda Montenegro, como uma Eunice já idosa nas cenas finais é especialmente tocante para o público brasileiro.

Essa contenção da protagonista reflete também um comedimento narrativo: Ainda estou aqui é um filme simples e objetivo. Parte da crítica, inclusive, considerou o filme “apolítico” ou “conciliador” precisamente por isso.

Tomarei a liberdade de discordar. O longa é profundamente político ao não poupar o espectador dos horrores dos porões da “tigrada”, a linha-dura dos militares; ao retratar a violência de um regime que, por meio de um estado policialesco que instaurava medo e paranoia constantes, contaminou os lares brasileiros de dentro para fora, colocando amigos e familiares uns contra os outros; ao recontar a história de uma mulher que lutou contra a ditadura da forma que podia: negando-se a ceder ao horror, e, enquanto cuidava da família, buscando uma verdade que só chegou 25 anos depois.

As aspas que dão início a este texto foram ditas por Ernesto Geisel, o penúltimo dos presidentes da ditadura. Assim como os homens do Exército invadem a casa dos Paiva sem violência expressa, quase com educação, o homem forte do regime – que muitos até hoje alegam ser o mais razoável entre os presidentes da ditadura – defendia o assassinato e a tortura de opositores tentando justificá-las com falsas brandura e humanidade.

Ainda estou aqui fala das memórias e da tragédia de um microcosmo familiar, de um trauma em nível muito pessoal; mas também de memória coletiva, histórica, de um país que ainda não enfrentou adequadamente a escara da ditadura, como bem nos lembra o filme em seus textos finais. É uma chaga que perdura por décadas e que ainda está aqui para nos acusar de nosso esquecimento.

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