Há um determinado momento em Anatomia de uma queda (França, 2023) em que uma das personagens afirma que, na falta de evidências concretas sobre um fato, na inexistência de uma base material que possa embasar uma opinião ou atitude, tudo o que resta é seguir um dos caminhos possíveis e apenas esperar que tenha sido a melhor decisão.
Essa é a filosofia que rege o filme protagonizado por Sandra Voyer (Sandra Hüller em uma potente atuação), que está em cartaz nos cinemas brasileiros e concorre a 5 Oscars. Sandra é uma escritora de sucesso que sustenta um atribulado casamento com Samuel Malesk (Samuel Theis), professor cuja maior ambição é precisamente tornar-se um escritor. Quando Samuel aparece morto, após cair (ou ser empurrado) do sótão da casa onde vive com Sandra e o filho, a investigação sobre as obscuras causas da morte eventualmente recai sobre a mulher, cujo relacionamento conturbado e instável com o falecido levanta suspeitas imediatas.
A partir daí, Anatomia de uma queda poderia facilmente se transformar em um thriller legal focado em descobrir o que aconteceu com Samuel: afinal, ele foi assassinado pela esposa ou cometeu suicídio? Mas o roteiro de Justine Triet (que também dirige) e Arhtur Harari possui ambições mais complexas e ambíguas.
Inevitavelmente, Sandra é indiciada pela morte do marido, e ao longo do processo os conceitos de verdade e mentira – erroneamente assumidos por todos nós como concretos e bem delimitados – são entrelaçados e tensionados. Uma dica dessa confusão entre fato e criação já nos é dada pelo fato dos protagonistas serem homônimos aos atores reais que os interpretam; além disso, em diversas cenas a câmera de Triet assume um caráter quase documental, como quando simula vídeos gravados pela polícia durante a investigação ou reportagens produzidas ao longo do julgamento da escritora.
Em certo ponto do processo, o promotor do caso (Antoine Reinartz) – que parece nutrir uma visão profundamente simplória e maniqueísta da vida – utiliza os livros já publicados de Sandra contra ela mesma: por possuírem narrativas com traços fortemente autobiográficos, defende o promotor, estariam escondidos ali, na ficção de Sandra, os elementos que permitiram enquadrar a escritora como culpada de assassinato.
Assim, se em um dos livros de Sandra uma personagem devaneia sobre assassinar o marido para fugir de um matrimônio que já não lhe apetece, isso seria uma prova definitiva da culpa da autora. Logo em seguida, o advogado de Sandra, Vincent (Swann Arlaud), critica: “estamos discutindo justiça e literatura aqui”.
Embora a tese do promotor seja naturalmente ingênua – afinal, nenhum autor é o texto que escreve -, essa discussão ganha força no filme porque, em Anatomia de uma queda, a ficção e a realidade, os fatos concretos da vida cotidiana e a leitura subjetiva que fazemos deles, são dolorosamente indissociáveis. É precisamente esse dilema que o filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner) precisa enfrentar ao se tornar uma testemunha chave do caso.
Ao nos aproximar e nos fazer sentir empatia por Sandra, ainda que não saibamos se ela é ou não culpada pela morte do marido, o filme escancara uma contradição inerente a todos nós: queremos sempre acreditar que estamos agindo de maneira correta e tomando as melhores escolhas diante dos conflitos cotidianos, mas de fato tudo o que nos resta é fazer leituras parciais, limitadas e deficientes sobre a vida, nutrindo apenas uma esperança de alcançarmos os melhores caminhos.
Anatomia de uma queda abandona discursos morais fáceis para nos recordar que estamos todos em queda livre: enquanto tentamos nos situar ante o caótico passar dos dias da forma mais adequada e justa possível, só podemos torcer para, no final, cairmos bem e sobre as duas pernas.